Os Pastores e as Paisagens da Serra da Estrela
sobre
Numa parceria com a Câmara Municipal de Seia, através da sua Fototeca, o Município de Oliveira do Hospital, no âmbito da XXIV Festa do Queijo Serra da Estrela e outros Produtos Locais de Qualidade, apresenta a exposição de fotografia “Os Pastores e as Paisagens da Serra da Estrela”, nome que singelamente atribuímos como representação das 30 fotografias expostas, da década de 1960, da autoria de Alberto Trindade Martinho, sociólogo e professor universitário, autor do recente livro “O Queijo da Serra da Estrela e a Transumância”.
Pretendemos, acima de tudo, com esta exposição, prestar homenagem a esta figura ímpar e nobre do nosso território que é o pastor da Serra da Estrela. Fazemos assim uma viagem pelos caminhos antigos da serra e acompanhamos o quotidiano vivido por estes homens, em franca e humilde relação com o gado e a natureza.
São fotografias graciosas aquelas que aqui apresentamos, mesmo que antigas, em tons cromáticos que agora parecem regressar aos amantes desta arte de registo do tempo, porque nos permitem um contacto com uma certa pureza de outrora e agora perdida. São fotografias de um autor que soube percorrer os mesmos trilhos dos pastores e deles retirar a sensibilidade necessária para a produção da colecção que aqui apresentamos.
Este é, portanto, um espelho sincero do passado, uma viagem pelo amor incondicional dos pastores aos seus rebanhos, aos seus cães e, em última análise, à grande e imensa Serra da Estrela, casa de trabalho, de suor, de lágrimas, de quilómetros percorridos, sempre a pé, mas também de alegrias e de abrigo. Que seja esta exposição de fotografia também uma serra de abrigo para todos aqueles que amam a arte de fotografar, mas igualmente a arte do pastoreio e dos seus mais ilustres protagonistas…
“Já lá vai o tempo em que não se concebia a ovinicultura sem a presença do pastor. Hoje, o fim da transumância a que se associam alterações significativas nas técnicas de maneio de gado, a evolução verificada no domínio da sanidade animal e os próprios normativos relativos ao fabrico de queijo alteraram o quadro primeiro de referência. As mudanças entretanto ocorridas
no domínio económico e social desvalorizaram, significativamente, uma profissão que, ao longo dos tempos e pela sua própria natureza, sempre foi incluída na esfera de uma certa marginalidade.
Na época do automático e do virtual podemos interrogar- nos acerca da possibilidade do pastoreio se poder efectuar sem a presença do pastor. A questão já perdeu parte da sua pertinência, mas há um quarto de século atrás ainda havia quem se perguntasse se o queijo
poderia viver “divorciado” do homem que guardava o rebanho. Para alguns, o desaparecimento do pastor é um absurdo, dado suscitar o entreabrir da porta que poderia conduzir ao fim do queijo tal como ainda hoje o imaginamos.
“Não será o pastor parte integrante deste ecossistema que é a Serra da Estrela? Fará sentido passar por alto a presença e intervenção desta lendária figura da vida pastoril e símbolo heráldico destas serranas terras?”
Fernando Vieira de Sá, preocupado com o curso das coisas, interrogava-se sobre este dilema fazendo-nos reflectir, afinal de contas, sobre o nosso próprio papel numa sociedade
em mudança evidente e acelerada.
“O pastor que tem sido cantado por poetas, como Vergílio, Gil Vicente e tantos outros, e forma, com o seu cão, o seu cajado, manta ao ombro e tarro com magras migalhas de pão para ensopar no almece e compartir uma refeição fugaz com o seu companheiro de percurso, a síntese de uma trama sociológica, económica e cultural de uma civilização, de um estado de desenvolvimento, de um circunstancialismo político e ético? Seria lícito passar-lhe ao lado sem o sentir, sem o reconhecer, sem o avaliar?
É evidente que, se o fizéssemos, mutilaríamos este complexo sistema que é a pastorícia. O pastor, de facto, é uma peça fundamental de todo este ecossistema, que da sua presença
no actual estado de coisas depende ser ou não possível o pastoreio, o mesmo é dizer haver ou não rebanhos.
Daí não ter hesitado em escrever que “se há um tipo propriamente português; se através dos acasos da história permaneceu puro algum exemplar de uma raça ante-histórica onde possamos filiar-nos, é aí que o havemos de procurar, e não entre os Galegos a norte do Douro, nem entre os Turdetanos da costa do Sul, nem entre as populações do litoral cruzadas com o sangue de muitas raças e com os sentimentos e costumes das mais variadas nações.
O pastor quase-bárbaro dessas cumedas da serra, a topetar com as nuvens (1.800 a 2.000 m de altitude), abordoado ao seu cajado, vestido de peles, seguindo o rebanho de ovelhas louras, é talvez o descendente dos companheiros de Viriato. Por essas eminências atapetadas de relva no Estio e de neves no Inverno, nem as vilas, nem as árvores se atrevem a subir: só o pastor nómada as habita.”
Os senhores das montanhas
Lugar por excelência do pastoreio – durante muito foi a primeira dentre as montanhas pastoris de Portugal – a Estrela partilhava essa actividade com outras zonas serranas. Para além dos caracteres próprios a cada cenário, o que há de comum em toda esta história são os homens que a fizeram, a modéstia do seu viver e a simplicidade das suas concepções sobre o mundo e as coisas. Mas estes “senhores das alturas”, apesar de sentados num “trono de rocha de onde viam nascer a vida pelas encostas”, no dizer de Oliveira Martins, foram vencidos por uma “terra chã” mais fácil de frequentar e mais aberta à inovação. Hoje, ao olharmos para os sobreviventes, não conseguiremos, certamente, associá-los a um qualquer Viriato e dificilmente os teremos por nossos ascendentes.
Luís Chaves fez-se eco dessa visão idílica do pastor ignorando o capital de sofrimento e de infortúnio que sempre rodeou estes pseudo-monarcas das alturas. “Tão primitivos que para eles é um palácio qualquer lura na lapa de um penedo, ou um murozinho que eles mesmos fazem de pedra solta; e, nas horas de paciência, cantam pastorelas gradas; tocam rudes flautas, que sonham com as avenas de Vergílio e Horácio; entalham com feituras bocados de cortiça,madeira, cana ou chifre, de onde saem rocas, ganchos de meia, cocharras, saleiros, caixas que lhes servem de utilidade umas e vendem ou dão as outras.
No entanto, os ricos rebanhos merinos, que despem a lã que a Beira veste e negoceia, retouçam no pasto; os ecos das vozeadas repercutem-se pelo Caramulinho, lá em cima, nos
Cântaros, no Malhão, nas lagoas da Estrela enorme, cá em baixo. Lá do alto, eles são senhores do mundo.”
As gestas, e o pastoreio figura entre elas, também conhecem um fim e os actuais “representantes da grei lusitana” já se deram conta de que o ocaso não é uma ideia vã. Há sempre a tentação de os imaginar de calças de ganga e penteado “à moda”, auscultadores nos
ouvidos ou pesado “tijolo” ao ombro, ambos emitindo os estranhos sons do nacional-cançonetismo em voga, brinco na orelha e telemóvel no bolso, conta no balcão
da sucursal bancária e cerveja à espera no balcão do café de aldeia – que isso de tascos já passou à história – usando o português mais em voga – “meu”, “iá”, “curtir”.
A caricatura pode parecer exagerada, mas reflecte cedências óbvias e imperativas a uma certa modernidade que teima em fazer dos bravos pastores dos Hermínios amostras quase sem valor.
Se bem que a ovinicultura moderna não se compadeça com certos modos de estar e
de fazer oriundos do passado, associando este último, cada vez mais, ao pitoresco,
o facto é que parte importante dos actuais produtores de queijo “Serra da Estrela” são ainda pequenos agricultores, quantas vezes agarrados à tradição e avessos a grandes mudanças, proprietários de um rebanho que não excede escassas dezenas de cabeças e de cuja dedicação e sacrifício depende parte importante do porvir do queijo e, numa perspectiva mais lata, da própria paisagem da ovinicultura.”
Câmara Municipal de Oliveira do Hospital
Pelouro da Cultura
março 2014
Excertos retirados dos capítulos “E do pastor?” e “Os senhores das montanhas”, do “Grande Livro do Queijo Serra da Estrela”, de Pedro Castro Henriques (Lisboa, 2008)